Mariana da Silva/GD
"Aos dezenove dias do mês de fevereiro de 1867, faleceu nesta paróchia com o sacramento da penitência, Bonifácia de 80 anos de idade, solteira, natural desta cidade, escrava de Dona Leopoldina da Gama e Silva, foi sepultada no cemitério. E para constar fiz este assento. Cônego José Jacinto da Costa e Silva”, diz o documento encontrado nos arquivos da Cúria Metropolitana de Cuiabá. Trata-se do registro do óbito de Mãe Bonifácia.
Os responsáveis pelo achado e sua transcrição são a pesquisadora e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, Neila Barreto, e o pesquisador Nedson Capistrano,durante um trabalho minucioso e detalhado. O registro reafirma a existência histórica da negra, cujo nome se dá ao Parque Mãe Bonifácia.
Neila Barreto contou que o achado ocorreu em meio aos documentos digitalizados em um álbum de CD’s da Cúria durante sua pesquisa sobre a vida do padre Ernesto Camilo Barreto. “Por acaso, achei essa certidão de Mãe Bonifácia. Quando você lê os textos sobre ela, ninguém consegue falar quando ela nasceu, quem ela era realmente. E nesse documento dá para você ter a certeza, que ela era escrava, a quem ela pertencia e quando morreu. Não se tinha certeza de quanto tempo mais ou menos ela viveu. E, com esse documento de morte, você tem uma luz do período que ela viveu”, afirma.
Pesquisador, memorialista e conselheiro estadual de cultura, Francisco das Chagas Rocha comenta que os documentos são fruto de um trabalho de desdobramento do Projeto Memória da Igreja em Mato Grosso: o Arquivo da Cúria Metropolitana de Cuiabá, concrofilmagem do acervo da Arquidiocese de Cuiabá, de 1756 a 1956. Trata-se de uma das mais importantes coleções referentes à trajetória da igreja católica em Mato Grosso, composta em 12 CD's incluindo Edição Digital do Catálogo de Documentos Históricos.
“Ao acessarmos os CDs vamos lendo com muita calma para ter noção da paleografia, que é o estudo da escrita antiga e assim sendo possível decifrar textos oitocentistas. Uma palavra muitas vezes no documento torna-se ilegível. Então é preciso ler os documentos que estão acima ou abaixo para se compreender os termos usados em cada um. Lendo um documento mais legível, você vai decifrando os textos de outro nos mesmos moldes. Pois a igreja tinha um padrão em confeccionar os atestados”, comenta o pesquisador.
O que se sabe até hoje
É dito popularmente que escravos que conseguiam fugir procuravam a Mãe Bonifácia em busca de auxílio e proteção. Eles eram orientados por ela para seguir pelo córrego para que os cães dos capitães do mato não pudessem farejá-los.
No imaginário coletivo do povo cuiabano, Mãe Bonifácia seria como a representação do monumento no parque em sua homenagem. Uma mãe negra, com cajado, representando sua idade avançada, com a mão sobre a cabeça de um escravo aos seus pés em busca de ajuda.
Essa representação ficou marcada por meio da escultura produzida pelo artista plástico Jonas Corrêa, de 2002. Com duas figuras, Jonas a produziu em Curitiba e trouxe para Cuiabá em seu carro Scort. Como não havia nenhuma referência de imagem dela, ele teve que desenvolver todo o conceito da imagem.
"Eu peguei como referência uma imagem de infância que eu tinha de uma mulher negra que morava lá perto de casa, no sítio em Pinhalão (PR), perto do rio. A gente ia no riozinho nadar e ela sempre ia lá lavar roupa e sempre chamava a gente para comer bolinhod que ela fazia ou mandioca com açúcar"..
Francisco Chagas comenta que o que se sabia sobre Mãe Bonifácia foi fruto do trabalho de pesquisa do historiador e membro da Academia Mato-grossense de Letras Francisco Alexandre Ferreira Mendes, que foi a campo e entrevistou diversas pessoas que a conheceram.
Em trecho publicado no jornal O Estado de Mato Grosso em 01 de janeiro de 1960 é dito que: “Quando em junho de 1867, a epidemia da varíola assolou a cidade, Mãe Bonifácia, como ficara conhecida pelos préstimos e pela sua bondade, já encanecida, fora acometida do mal. Isolada naquele recanto sombrio, sentindo aproximar-se o fim, com as energias que ainda lhe permitiam as forças, escondeu todas as joias e mais peças de ouro, anéis e pedras preciosas, num caldeirão de ferro que enterrou nas proximidades da casa. Vindo para a cidade em busca de recursos médicos, morreu ignorada. [...]
A notícia da existência de um “enterro” feito por Mãe Bonifácia, no local da tapera, foi se espalhando de boca em boca na cidade e a crendice popular na esperança de encontrá-lo, empregando não raro, para o fim, os recursos da feitiçaria nas invocações de “Pai Setubal” e de outros patronos da ignorância e da ingenuidade dos simples, despertou também a cobiça de muita gente boa. A terra foi escavada e revolvida em diversos pontos, porém o tesouro até o momento, ao que parece, não foi encontrado, jazendo no esconderijo em que o encerrou o zelo da serviçal preta Mãe Bonifácia. A tradição continuada deu ao córrego do “Caixão”, naquele trecho da terra, o nome de “Paiol de pólvora do córrego Mãe Bonifácia”, como é ainda conhecido na atualidade."